pantera negra - olho de diamante

domingo

XVI






Fonte

(...) Tem sido afirmado que os xamãs e curandeiros têm muita coisa em comum com as pessoas mentalmente doentes, ou pelo menos com aquelas que são psicologicamente instáveis, mas Eliade salientou, por exemplo, que os esquimós conseguem distinguir claramente uma doença "xamanística" de um caso comum de distúrbio mental.12 No decurso da doença iniciatória xamanística, o iniciado consegue encontrar a própria cura, o que é precisamente o que a pessoa comum que sofre de doença mental não consegue fazer. Além disso, os xamãs são os indivíduos criativos, os poetas e os artistas, das suas comunidades. Isso traz à baila uma questão que também é importante para os terapeutas de hoje - o chiste popular está bastante familiarizado com a figura do psiquiatra que é louco.13 Com relação a isso, gostaria de me associar à perspectiva dos esquimós: a pessoa que consegue curar a si mesma não é a pessoa doente e, sim, aquela capaz de ajudar os outros, pois essa pessoa está intacta em seu núcleo mais íntimo e possui a força do ego, dois pré-requisitos indispensáveis à profissão de terapeuta. Ela sofre sua doença iniciatória não por causa de uma fraqueza, e sim a fim de se familiarizar com "todos os tipos de doenças", para saber a partir de sua experiência o que significam a possessão, a depressão, a dissociação esquizóide, e assim por diante.
Tampouco seu desmembramento iniciatório é esquizofrenia. De acordo com a descrição mitológica, trata-se de uma redução ao esqueleto. Mas o que isso significa segundo os povos que criaram esses mitos é o indestrutível, o eterno no ser humano, e também aquilo que é perpetuado através da continuidade das gerações. Transportado para a linguagem atual, significa que o iniciado passa por uma "análise" no sentido de uma dissolução de todas as suas características não autênticas - por exemplo: convencionais ou infantis -, a fim de conquistar o caminho em direção ao que ele é em seu verdadeiro ser. Na linguagem junguiana, significa que ele se torna individuado, uma personalidade sólida que não é mais um futebol de afetos internos e projeções ou de tendências e modismos externos da sociedade.
No contexto etnológico, contudo, o curador também tem uma sombra específica, ou seja, essa vocação também possui um contra-aspecto sombrio. Trata-se da figura do xamã ou curandeiro demoníaco. A forma mais superficial disso é o terapeuta que é governado por um complexo de poder. É evidente que nessa profissão, na qual o indivíduo é seu próprio senhor e amo, e na qual as outras pessoas freqüentemente se agarram a ele de maneira ingênua e infantil, o abuso do poder representa uma enorme tentação. Por exemplo, o analista pode se ver tentando assumir o papel do pai ou do sábio, aquele que sabe o que está certo. Por mais repugnante que isso seja, não é, na minha opinião, o mais perigoso, visto que esses terapeutas são de modo geral devidamente importunados por pacientes igualmente possuídos pelo poder, ou punidos através do fato de que eles tendem a reunir ao redor de si um tedioso jardim-de-infância de pacientes que os atormentam com exigências.
O curador !demoníaco" é algo em escala maior, algo mais perigoso. Os Yakuts, por exemplo, acreditam que no momento da iniciação, o xamã tem a escolha de ser iniciado pelos espíritos da "fonte da destruição e da morte" ou pelos espíritos "da cura e da salvação".14 O que é confuso neste caso é que aquele iniciado pelos espíritos do mal também pode ser considerado um grande xamã.15 Mas para que esse indivíduo se torne xamã, muitas pessoas (freqüentemente do seu clã) tem que morrer16, ao passo que o clã de um xamã do lado da luz floresce.17 Por conseguinte, o primeiro tipo de xamã é chamado de "sanguinário". A partir de um ponto de vista psicológico, os xamãs do mal são aqueles que encontraram o acesso ao incosnciente e se mostraram suficientemente fortes para não serem derrubados por ele, mas que, por assim dizer, intencionalmente se rendem aos impulsos sombrios do inconsciente.
Jung descreveu o "demoníaco", que também poderia ser chamado de "magia negra", nos seguintes termos.18 Enquanto a "magia branca" se esforça para expulsar do inconsciente as forças da desordem, "a magia negra exalta os impulsos destrutivos como a única verdade válida em oposição à ordem até então prevalcente, além de aplicá-los a serviço do indivíduo em vez de a serviço de toda a comunidade. Os meios utilizados para isso são idéias, imagens e expressões primitivas, fascinadoras ou assustadoras, incompreensíveis para o entendimento normal, palavras estranhas", e assim por diante. "O demoníaco... se baseia no fato de que existem forças inconscientes de negação e destruição, e de que o mal é real". A pessoa que exerce essas forças de magia negra está geralmente possuída por um conteúdo incosnciente. Jung menciona aí o exemplo, de Hitler como um salvador negativo ou um destruidor. Na esfera da tradição xamanística, são conhecidos perigosos xamãs desse tipo, dos quais todo o mundo tem medo. Mircea Eliade fornece muitos exemplos da arrogância dos xamãs, que freqüentemente é vista como a verdadeira fonte do mal e como a causa do atual estado deteriorado do xamanismo.19 Na minha opinião, essa arrogância também existe entre os terapeutas modernos, e os que são marcados por ela são, creio eu, mais perigosos do que aqueles com treinamento profissional inadequado. Imagino que não haja nenhum procedimento organizacional ou racional para manter esses indivíduos fora da profissão da análise. Só podemos esperar que o público tenha discernimento suficiente para evitá-los.
Refletindo sobre os pontos apresentados até agora, vemos que a profissão do analista faz exigências eminentemente altas, exigências essas que dificilmente alguém é capaz de satisfazer inteiramente. graças aos céus os povos nativos também têm consciência de que não são apenas os grandes xamãs, mas também os xamãs secundários e menos importantes que podem curar as pessoas. A grandeza ou a importância de um xamã depende da freqüência e da profundidade com que ele penetrou no inconsciente e de quanto sofrimento ele suportou para fazer isso. É por isso que, na minha opinião, o que é absolutamente necessário não é nos tornarmos um grande curador e, sim, conhecermos nossos limites. Porque pode acontecer - e não é tão raro assim - que um paciente cresça mais do que nós, ou seja, avance mais no processo interior do que nós já avançamos.
A tendência instintiva do analista é então tentar trazer o paciente de volta para baixo, de uma forma redutiva, para seu nível de consciência. É somente quando está consciente de seus limites que ele pode evitar esse perigo e não rebaixar o elemento significativo e crescente nos outros através de um estilo de interpretação !"nada mais do quê". Quando o analista permanece consciente dos seus limites, ele pode às vezes atém mesmo ajudar um paciente que esteja além dele, sendo sincero e contentando-se em contribuir estritamente com a ajuda de que é capaz, deixando o resto por conta do paciente. Ele deve admitir seus pontos fracos e, invertendo as posições, pedir a compreensão do paciente. Nesse ponto, o processo deixa de ser um "tratamento", tornando-se um relacionamento que envolve um mútuo dar e receber. Isso, é claro, deve ser levado em conta na questão financeira na análise.
Um problema especial na profissão da análise é a criatividade. Sem sombra de dúvida, os melhores analistas são aqueles que, ao lado da profissão, estão envolvidos em alguma atividade criativa. Não é à toa que, nas sociedades primitivas, os curandeiros são também, de modo geral, os poetas, pintores e artistas do seu povo. Os elementos criativos e curativos estão muito próximos. "O ímpeto do caos ascendente", explica Jung, "procura novas idéias simbólicas que abarcarão e expressarão não apenas a ordem anterior como também os conteúdos essenciais da desordem. Essas idéias teriam um efeito mágico, mantendo enfeitiçadas as forças destrutivas da desordem, como foi o caso do cristianismo e em todas as outras religiões".20
O que Jung está dizendo aí, com relação ao nível coletivo em geral, também se aplica tanto a grupos menores quanto ao indivíduo. Em todos os contextos permanece a questão de encontrar no mais profundo de nós a influência ordenada do Si-mesmo e expressá-la nos símbolos, na arte, nas nossas ações. Se além de dar as consultas, o analista não estiver trabalhando também em sua tarefa, como salientou Jung, ele se torna escravo da rotina e, com tempo, torna-se uma analista insípido. Pude observar que nesta difícil profissão certo azedume e desprezo pelos nossos semelhantes tende a se insinuar em nós. É somente trabalhando continuamente em nossa tarefa criativa interior que podemos evitar essa deterioração. E não basta termos sentido uma única vez o chamado da vocação; o direito de praticarmos esta profissão precisa ser repetidamente conquistado dentro de nós. (...)

Retirado do site RUBEDO

Para ler na íntegra acessar ao mesmo.

posted by PanTeRA neGrA* at 10/15/2006

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